Por Carlos Lula – Tenho incontida admiração por Nicolau Maquiavel, um dos mais ilustres florentinos da história. Sua importância é tão grande que as expressões “maquiavélico” e “maquiavelismo” como sinônimos de astúcia, cinismo, procedimento traiçoeiro ganharam o cotidiano. Saíram da esfera do debate público e entraram nas relações privadas. Ninguém pretende ser alcunhado de maquiavélico, porque a expressão, longe de ser elogiosa, serve a todos os ódios e é uma maneira de desqualificar o oponente, taxando-o de inescrupuloso, alguém disposto a qualquer coisa para vencer uma disputa. O maquiavélico seria uma encarnação do mal. Não por acaso, a todo tirano lançamos a mesma sentença: inspirou-se, sem dúvida, em Nicolau Maquiavel.
Não me canso de afirmar a injustiça de tal destino. Maquiavel, longe de querer escrever um manual sobre a conduta dos monarcas, preocupou-se a falar sobre o Estado, não o melhor Estado, mas o Estado real. Ele procurou analisar a realidade como ela efetivamente é e não como ele gostaria que fosse. Não o preocupava o dever-ser, mas o ser. Questionava ele como pode ser resolvido o inevitável ciclo de estabilidade e caos, inerente à política. Curioso, que sua vida pode ser resumida nessa ambivalência, estabilidade/caos.
Nascido em 1469, Maquiavel conviveu com uma Itália esplendorosa e dividida. Nápoles, dominado pelos Aragão; os Estados papais, ao centro; Florença, dos Medici; e ainda Milão e Veneza. As últimas décadas do Século XV eram de enorme instabilidade e Nicolau pode conviver com figuras singulares como o Papa Bórgia, para citar apenas um exemplo. Em 1498, ocupa seu primeiro cargo público de destaque (uma espécie de diplomacia), do qual é demitido em 1512, com a volta dos Medici ao poder. Em 1513 é preso, acusado de integrar uma fracassada conspiração contra o novo governo. Após sair da prisão e tentar em vão reconquistar seu emprego, nascem as obras do analista político. Seu forçado retiro faz nascer sua literatura.
Infelizmente, para os tiranos ele era um republicano. Quando iniciada a República, ele era considerado inimigo, por ter ligações com os depostos monarcas. Morre em 1527. Na trajetória de sua vida ele pôde sentir a principal lição de O Príncipe: o espaço da política se constitui e é regido por mecanismos distintos dos que norteiam a vida privada. Todos sentimos o poder, mas poucos o conhecem. E para conhecê-lo, temos de entender que a incerteza e a instabilidade são próprios da atividade política, que, se não leva ao céu, nos leva diretamente ao inferno na sua ausência.
Para Maquiavel, no que só posso concordar, os homens são “ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante o perigo, ávidos de lucro”. Esses atributos negativos da natureza humana fazem parte da realidade com a qual temos de lidar. Para Maquiavel, a história repete-se sempre, com a ordem sucedendo a desordem, e a política tentando domesticar a natureza humana. Para ele, o poder é o único meio de enfrentar o conflito, ainda que de maneira precária e transitória.
A perversidade das paixões humanas sempre volta a se manifestar. E em toda sociedade, há duas forças antagônicas, uma que quer dominar e outra que não quer ser dominada. Se todos quisessem o domínio, com a vitória, tudo seria resolvido. Mas nunca haverá paz, porque os vencidos não são sufocados pelos vencedores, pois permanecem querendo o domínio.
A estabilidade das relações políticas, portanto, surge quando se encontram mecanismos que imponham estabilidade a essa relação, permitindo um convívio harmonioso entre rivais. Assim, o governante não é simplesmente o mais forte, que pode até vencer por ter mais força, mas dificilmente terá condições de manter seu poder. O governante para Maquiavel deve possuir virtù, sabedoria para agir conforme as circunstâncias.
O poder se funda na força, mas a sua manutenção é advinda da virtù, a capacidade do príncipe de utilizar a própria força, mas de modo virtuoso. E, sobretudo, “aprender os meios de não ser bom e a fazer uso ou não deles, conforme as necessidades”. Porque para Maquiavel, a virtù política exige também os vícios, assim como exige o reenquadramento da força. Eis o mundo real, mas há quem prefira manter-se cego. É muito mais cômodo.
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