por Jorge Furtado*
Jorge Furtado, diretor de “O Mercado de Notícias”, escreve sobre a atual situação da imprensa e seus quatro séculos de história
Não sei viver sem notícias. Saber o que está acontecendo lá fora, na cidade, no país, no mundo, é para mim uma necessidade, tão fundamental quanto ouvir e contar histórias. Também não sei viver sem histórias, fábulas inventadas por mentes criativas que nos fazem exercitar, em segurança, os sentimentos mais doces e mais ferozes. Ficção e não ficção se completam, se alimentam, juntas nos fazem compreender o mundo e a nós mesmos.
As narrativas sobre o mundo real existem desde que o homem aprendeu a se comunicar, foram um fator decisivo para que a nossa espécie dominasse o planeta. Saber, e comunicar, onde encontrar água e alimento, onde mora o inimigo, se ele se aproxima ou se afasta, deram aos primeiros homens melhores chances de sobrevivência. Bem informados, podemos tomar melhores decisões.
Relatos de viagem, cartas de emissários a países distantes, sempre foram um instrumento fundamental para decidir o que fazer. O soldado ateniense Feidípedes, que correu 42 quilômetros para avisar as mulheres de Atenas de que seus maridos haviam vencido os persas na batalha de Maratona, não era mais que um repórter chegando da rua com boas notícias.
A invenção da imprensa de tipos móveis, no século 15, fez explodir a circulação de informações. Os livros, manuscritos e até então objetos de luxo destinados à nobreza, tornaram-se acessíveis a quase todos. As cartas e os relatos dos viajantes nas praças públicas transformaram-se em jornais e revistas. Neste novo mundo criado pela imprensa, todos podiam saber de tudo, mas ainda era vital distinguir os relatos fantásticos das informações verdadeiras, notícias de bruxas, dragões e fantasmas eram muito populares.
Na Inglaterra renascentista, em quatro décadas de prosperidade e conquistas sob o reinado de Elizabeth I, o teatro criou um novo ser humano, capaz de entender que o seu futuro não dependia do desejo dos deuses, mas sim de suas próprias decisões. E não apenas o destino do indivíduo, também o futuro da comunidade dependia de boas ou más escolhas. O teatro elisabetano, entre muitos temas, dramatizava a angústia sucessória, várias peças de Shakespeare, Jonson, Marlowe e Kyd tratam do assunto. Às vezes, matar o herdeiro do rei era a única maneira de evitar que o trono fosse ocupado por um inepto.
A imprensa, recém criada, refletia a diversidade de opiniões e também foi responsável pelo poder minguante do monarca e crescente do parlamento. É bom lembrar que os ingleses decapitaram um rei, Carlos I, 140 anos antes da guilhotina virar moda na França. Os colonos ingleses que cruzaram o Atlântico para fundar, na América, a primeira democracia moderna, levaram com eles a aversão aos reis, o ideal de uma imprensa livre e também a paixão pelo teatro.
Em quatro séculos de história, a imprensa cresceu e se tornou um grande poder, com interesses econômicos e políticos. Jornais, revistas, e depois o rádio e a televisão, erguiam e derrubavam governantes, criavam moda e padrões de consumo, formando consensos e impondo aos leitores sua visão de mundo. Isso até surgir a internet.
O mundo digital e a rede mundial de computadores mudaram tudo, tanto ou mais que os tipos móveis de Gutemberg. O consumidor passivo tornou-se também um produtor de notícias, instantaneamente compartilhadas com o mundo inteiro. Blogs, sites, twitters e tais ampliaram o volume de informações de forma nunca antes imaginada. Hoje, toda informação é pública e eterna, não há mais segredos, a ponto de muita gente pensar que a profissão de jornalista estava em extinção. Pois eu penso exatamente o oposto.
A necessidade de distinguir o que é fato do que é ficção não mudou, é uma questão vital para a sobrevivência da espécie humana. Os computadores vão entrar em pane com a virada do século? A crise financeira americana vai mesmo varrer o Brasil como um tsunami? Temos ou não temos que vacinar nossos filhos contra a febre amarela? A Copa do Mundo vai ser mesmo um fiasco?
Nas democracias, o destino do país depende da decisão individual de cada eleitor, segundo seu entendimento do que é melhor para a comunidade. O jornalismo tem um papel fundamental na formação deste entendimento. A imprensa brasileira, antes do golpe militar de 1964, tinha posições políticas muito claras, cada jornal apoiando abertamente um partido. Sem exceções, a imprensa apoiou o golpe militar, alguns veículos hoje reconhecem este erro publicamente. O recrudescimento da ditadura fez com que alguns jornais enfrentassem o governo, nos limites possíveis num regime de exceção, marcado pela censura, prisões arbitrárias, tortura e mortes. Na resistência ao regime militar, surge a imprensa alternativa, até que a abertura política e o fim da ditadura viesse unir os jornais no apoio ao novo governo civil.
A grande imprensa brasileira foi, por quase toda a sua história, francamente governista. Esta situação mudou em 2002, com a chegada de Lula ao poder. Talvez por divergências políticas e ideológicas, talvez por preconceitos, certamente por conta da velha luta de classes, a grande imprensa tornou-se majoritariamente oposicionista, embora às vezes se pretenda neutra e apartidária. Hoje, as vozes dissonantes são exceções nos grandes veículos, enquanto a diversidade de opiniões encontra espaço no jornalismo digital, que cresce de forma acelerada, prenunciando o ocaso do jornalismo de papel.
O produto do jornalismo não é a informação, é a credibilidade. Mais do que nunca, precisamos de jornalistas, profissionais treinados e capacitados para separar o que é relevante do que não é, sem preconceitos, com honestidade intelectual para admitir erros e mudar de ideia. Passado o primeiro impacto do vendaval de informações produzido pela internet, o bom jornalismo vai sobreviver. E vai continuar, como sempre, indispensável. Sem ele, não há democracia possível.
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